Bruno gosta de brincar com as formigas na ponte de pedra. Algo peculiar mora ali.
Detalhes:
Janeiro de 2019
925 palavras
Gênero: fantasia
Do que é feita a ponte de pedra?
Bruno não viu o sol se pôr. Com o queixo enfiado na terra, seus olhos acompanhavam a linha de formigas que marchava rente à murada da ponte de pedra, transportando folhinhas e migalhas. Uma delas carregava a mais minúscula flor — Charlote. Como deveria ser morar com Charlote no formigueiro no final da ponte? A cor do céu mudou enquanto Bruno se arrastava pelo chão.
Chamaram seu nome.
Ele levantou a cabeça e viu o azul alaranjado. Seus músculos se contraíram. Mamãe estava parada em cima do morrinho, ainda de avental, pano de prato no ombro. Ele se distraiu. Ele não podia se distrair.
Bruno esfregou os joelhos e a poeira preta grudou em suas mãos. Mamãe não ia ficar feliz — ela não gostava da ponte. O rio havia secado há tempos. Pessoas faziam coisas feias embaixo da ponte, ela dizia. Um vulto chamou a atenção de Bruno. Ele estreitou os olhos. Uma das pedras da ponte se moveu.
Seu nome de novo, dessa vez completo. Bruno Henrique.
Bruno virou e correu até a mãe. Ela bateu o pano de prato em suas canelas sujas, sem dizer uma palavra. Estava escuro quando chegaram em casa. Mamãe o puxou pra dentro. Bruno não abriu a boca — tirou a roupa e entrou no banho. Limpo e vestido, se enfiou debaixo da cama. Quietinho. Já tinha funcionado antes.
A dobradiça da porta de entrada rangeu ao abrir e Bruno prendeu a respiração. Sua mãe o chamou. Na sala, o pai segurava o cinto. Bruno foi até ele, virou de costa e mordeu a língua com força. Era pior quando ele chorava.
Passou duas semanas no quarto, em silêncio. Quando Bruno não mancava mais, pediu à mãe pra ir ao parquinho. Ela franziu o cenho e o espiou de canto de olho antes de afirmar com a cabeça.
As crianças gritavam e corriam pela areia, fazendo fila no escorrega. Bruno não queria brincar com elas, queria brincar com as formigas. Correndo pela vila o mais rápido possível, ele voltou à ponte de pedra.
Bruno não estava sozinho. Um dos garotos carregava uma ripa de madeira e o outro pisoteava o chão. Gustavo e Rafael. As formigas fugiam pela murada, escalando uma por cima das outras. Bruno os conhecia da vizinhança. Os dois riam. Ele cerrou os punhos e suas unhas deixaram marcas nas palmas. Charlote.
Eles eram mais velhos.
Gustavo chocou a ripa de madeira no chão. A ripa raspou na murada da ponte, lascando uma das pedras. Os dois se encararam, sobrancelhas erguidas. Rafael pegou a ripa e a chocou contra a murada da ponte. Uma das pedras se partiu. Os dois riram e Rafael levantou a ripa outra vez.
Quando Bruno se deu conta, agarrava o garoto pela camisa. Rafael cambaleou e, com um grito, largou a madeira. Bruno a chutou pra longe. Gustavo estava em sua frente, uma cabeça mais alto que ele. Seu coração acelerou. Os dois avançaram. Bruno fechou os olhos e mordeu a língua.
A dor não veio. Um rangido rompeu o silêncio, e o chão estremeceu.
Um buraco havia surgido no chão da ponte — uma pedra faltava. Na sua frente, impedindo a passagem dos dois garotos, um pequeno ser de pedra estendia seus bracinhos. Bruno prendeu o fôlego — o chapéu pontudo chegava à altura de seu nariz.
Os dois garotos se afastaram. Gustavo, sangue no olhar, preparou um chute. Uma segunda criatura se atirou no seu pescoço. Ele soltou um grito e caiu no chão. As pedras da superfície da ponte tomaram vida, entrando em batalha.
Rafael olhou para os dois lados. Bruno despertou do transe. Correu até a ripa e a jogou pra fora da ponte. Rafael bufou. Os seres de pedra cercaram os dois garotos. Gustavo os chutava com força. Rafael o puxou pelo ombro e balançou a cabeça. Os dois correram, passando o morrinho, e desapareceram no horizonte.
Bruno suspirou. A ponte estava careca.
O primeiro e maior de todos os seres andou até ele. Em suas mãos havia uma coroa de galhos e folhas — no centro, a mais minúscula das flores. A linha de formigas havia voltado a caminhar rente ao parapeito da ponte. Os lábios de Bruno se abriram em um sorriso. Ele se ajoelhou, e o ser de pedra acomodou a coroa em seus cachos.
As criaturas se afastaram, revelando no chão pedaços de pedra quebrada. Os pequeninos se agitaram. O maior deles levantou as mãos. Todos ficaram em silêncio. Recolheram os pedaços de pedra e marcharam. Bruno os seguiu.
O líder das criaturas os guiou pra debaixo da ponte, onde há muito havia corrido o rio. Florezinhas cresciam entre as rachaduras do barro seco. Eles cavaram um buraco e enterraram o corpo. Sentados ao redor do túmulo, cantaram cantigas e contaram estórias em uma língua que Bruno não entendia.
Um dos pequenos correu e se encaixou de volta na ponte de pedra. Bruno olhou para o céu e prendeu a respiração. Escuro. Os pequenos seres se apressaram para seus lugares. No morrinho, duas silhuetas. Uma usava avental; a outra segurava um cinto. Bruno inspirou fundo e se levantou.
Um puxão em sua bermuda fez ele virar a cabeça. O líder das criaturas pegou sua mão e o puxou pra debaixo da ponte. Bruno respirava ofegante. Um rangido ecoou pelo ar. As pedras se rearranjaram, e uma abertura apareceu no teto da ponte. O líder pulou pra dentro, se inclinou e estendeu a mão. Bruno olhou pra trás. As duas silhuetas se aproximavam. Aceitou a mão e entrou no buraco, encolhendo-se como uma pedrinha.
Bruno virou ponte.
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